MOTE:

"Eu sou uma autêntica bomba abandonada! Temo explodir a qualquer momento..."
- Frase de um ex-combatente, anónimo.

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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Capitulo do livro "A Linguagem do Silêncio", de FERNANDO PEIXOTO


“Pensar a sós um passado comum, sujeito às falas de um presente diferente é a um tempo trair e conservar. E aceitar isso é assumir por fim o ter partido”.
                                                                                                
                                     Maria Velho da Costa, in: «Lugar Comum»

Muitos foram os anos da revolta e a pólvora das palavras encheu-nos a língua de um sabor a urtigas. Dia a dia procurámos a constelação perdida no universo plúmbeo da cidade em que crescemos. Das ruas, das travessas, das vielas e das ilhas esperámos longos anos o coche travestido de carro de David, com diamantes nas portas e safiras enormes nos olhos dos cavalos. Mas das ruas, das travessas das vielas e das ilhas chegaram-nos apenas os tectos baixos e escuros das casas pobres onde crescíamos numa fúria incontida de arrasar o espaço circundante. O furor dos nossos músculos crescia nos dentes que estalavam de raiva e um Ícaro teimoso ganhava asas nos olhos que desafiavam o limite da atmosfera.

Mas eu saí a barra, Lígia, durante semanas senti na fronte o salpicar de outras ondas, de outros mares e, durante anos, as pedras que pisei tinham por vezes a cor do sangue jovem, aquele que se recusa a coalhar durante intermináveis horas de revolta contra a inevitabilidade da morte.
Tu ficaste aqui, Lígia, entre o liceu e o cabeleireiro, entre o romance e o encontro furtivo no cinema, entre as amigas que nunca abandonaste nem esqueceste, entre as raízes cada vez mais longas do teu cotidiano citadino.
Eu saí a barra, Lígia, passei além do Bojador com a missão de destruir os padrões graníticos de Gil Eanes e de Gama, por vezes travestido de Veloso camoniano, impante das manchas que o império me concedia como medalhas arrogantes sobre a farda, e voltei mais pesado de medo, mais velho de angústia, mais ferido de náusea, mais gordo de História, com imagens de projécteis atravessando as minhas insónias frequentes.
            - Sabes o que é a Rocha do Conde de Óbidos?
            - Isso é no Tejo, não é? Passei lá uma vez, creio, quando fui com os meus pais visitar um navio de guerra. Ah! Gostei foi do Jardim Zoológico! Giro, giro!
            «Também eu», estive quase a dizer-te, mas contive-me a tempo. Como irias perceber o drama do gorila de Mayombe, preso ali, entre grades desgastadas pelos olhares estúpidos de milhares de mirones, definhando ao sol de Sete Rios a amargura de um exílio voluntário?
Vi-te então entre os milhares de turistas anónimos, fotografando a Lisboa do Parque Mayer, dos bares ínvios do Bairro Alto, da aldeia dos macacos, vi-te assestar a máquina sobre os braços do Cristo-Rei, preocupada com a neblina que o Tejo arrastara só para chatear e estragar o colorido do diapositivo da tua Kodak de bolso. E subir o Rossio para comprar um gelado, distender as pernas na relva do Parque e dar um salto à Estufa Fria.

Mas a essa hora, Lígia, a essa mesma hora, eu descia com muitos outros a Calçada da Ajuda rumo à Rocha do Conde de Óbidos onde um monstro de aço flutuante nos esperava.
No monumento às descobertas, em Belém, um grupo de provincianos multicolores saltava como os macacos em rodopio vertiginoso ante os aplausos de estrangeiro cor de trigo, enquanto sob a relva um casal se conhecia melhor, com as línguas entre as bocas e as coxas misturadas numa órbita de enguias.
Era ali, Lígia, que se dava o primeiro passo para o mistério do futuro, naquele cais de betão, tão longe e tão perto do folklore, do úisque e das máquinas fotográficas. Ali era a Rocha do Conde de Óbidos, abençoada por um monstro de cimento, prostrado de braços resignadamente abertos sobre um morro de Almada, assistindo impávido às partidas dos homens e ás chegadas das urnas.
- É no Tejo, é, Lígia! Nesse rio que há cinco séculos transformaram em antecâmara da morte.
Não, não me ouviste dizer isto porque, se os meus lábios se moveram, o som quedou-se nas catacumbas  da cobardia, era a linguagem do silêncio, um dialecto pessoal que nunca entenderias.
Sabes, Lígia, apetecia-me hoje falar-te da guerra, das serpentes assassinadas a tiro de G3, dos bailes de sábado à noite, do sabor agridoce do vinho da palmeira, cor de esperma, extraído pela manhã, e dos banhos nus nos riachos quentes, da pesca à granada, do fuzilamento nocturno da gazela virgem, do Cruzeiro do Sul reflectindo-se nas águas do Chiloango, do pé do cabo Maianga a despedir-se do dono e a aproveitar o ímpeto da mina para voar até á copa de uma árvore, lado a lado com o pneu do unimogue.
Mas calo-me, Lígia, deito-me, viro-me, e releio João de Melo que me entende melhor e me sussurra numa confidência íntima «a guerra é toda a África lúcida, um incêndio frenético, batuque de liberdade em cada sábado que não é uma véspera dos domingos».
Se eu tivesse aqui o pavilhão de madeira do gordo cabo-verdeano Sambo, onde o merengue rebentava nas noites de sábado, levava-te comigo, Lígia. Talvez assumisses a cor do desespero que nunca bronzeou teu corpo nórdico.

                                         Fernando Peixoto, in: “A Liguagem do Silêncio”
                                     – Ciclo da Guerra Colonial – II, Porto, 1984 
Imagem: sapo.pt


                                                            

1 comentário:

  1. Olá. Gostei, gostei muito!
    Não conhecia esta e de certeza, muitas outras prosas de Fernando Peixoto.
    Obrigada Eduardo Roseira pela partilha.
    Abraço
    Maria Mamede

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