MOTE:

"Eu sou uma autêntica bomba abandonada! Temo explodir a qualquer momento..."
- Frase de um ex-combatente, anónimo.

Amigos

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Angola era deles







 
Em meados dos anos 60, talvez entre 63 e 67, o senhor António Ribeiro, natural da freguesia de Paranhos, concelho do Porto, casado, residente na freguesia do Bonfim, industrial, bem apessoado e, economicamente, bem instalado, vê-se com dois filhos cumprindo o serviço militar. O mais velho, quase livre, é de repente mobilizado para S. Tomé e Príncipe e o outro, da fornada seguinte, incorporado num batalhão de apoio social no quartel de Évora, com guia de marcha para Angola.
Dois filhos dois amores e muitas lágrimas.


Ontem, como hoje, quem tem unhas toca viola e, quem pode, até contrata quem lhe ensine as músicas. Procura um e outro amigo, vai à fala com o amigo do outro amigo e consegue pagar a permuta com outro soldado para ir na vez do filho mais velho, rumo a S. Tomé.
E agora, o outro?
Pois Angola, tal como a Guiné, eram lugares de más novas, de medos, de partidas sem certeza de chegadas. A luta era agora mais renhida e era urgente correr e galgar barreiras.
Abrem-se portas de velhos militares na reserva e de "primos" médicos e, o rapaz mais novo, é internado no Hospital Militar do Porto para fazer exames e talvez descobrir uma doença incompatível com os ares angolanos.
E os favores vão-se pagando, rezando missas e dando esmolas aos pobres do costume.
Desta vez a coisa não era fácil, se calhar não se conseguia... os relatórios eram pouca coisa e dois filhos da mesma casa era muita uva para uma só videira.


Dobra-se a parada, há mais uns contactos, mais uma esperança, mais uma velinha para o santo Quericalho da Maia e... nada feito.
Já com algum atraso em relação aos colegas, parte o nosso jovem da estação de Campanhã, rumo a Évora para formar batalhão e partir para o norte de Angola.
Quase ao fim de 24 meses de serviço militar no continente, toca a partir para dar mais cerca de 28 meses numa terra tão distante quanto desconhecida dessa África que diziam também ser nossa..


Restavam  agora os famosos aerogramas oferecidos por senhoras bondosas que formavam o movimento nacional feminino (quase todas esposas amantíssimas de militares de carreira, recrutados e bem pagos) que diziam apoiar os soldadinhos, coitadinhos, que estavam longe do puto (assim chamavam a Portugal continental), longe das mãezinhas e das noivas e, é claro, as mensagens de natal desejando  “prospriedades" para o ano novo e dos beijinhos para a madrinha de guerra da sua aldeia.
Este filho mais novo do senhor Ribeiro, ainda teve a sorte do pai ser um industrial com massinha para lhe pagar uma viagem, a "casa" a meio da comissão, e portanto matar saudades e carregar baterias para outro tanto tempo de separação, entretanto esbatida por uns salpicões ou um presunto regadinho com champanhe que lhe iam enviando, via aérea, com portes caríssimos, para uma tainada com os amigos, lá longe onde o sol ainda castiga mais.


Entretanto, os senhores militares de carreira, estavam muito bem de vida.
Pediam sempre para fazer três comissões no Ultramar.
Na Guiné não convinha muito, porque havia muita mortandade mas, mesmo assim, foi por lá que o Valentim enriqueceu com o negócio das batatas para a cantina...
Agora, Angola ou Moçambique era como quem limpa o rabo a um menino.
Com o que ganhava na 1ª comprava-se um bom terreno. Com a 2ª construía-se o palacete e, com a 3ª Comissão, mobilava-se o sonho, comprava-se um carrito para a "saudosa esposa" e ainda se fazia uma promissória gorda para o futuro.
Além disso, nas oficinas de apoio direto, onde se faziam  as reparações  e respetivas manutenções das viaturas militares, com materiais do estado português e a mão-de-obra dos soldados parolos do puto, faziam-se janelas, portões, gradeamentos e tudo o que era possível depois enviar para Lisboa, a custo zero, também no transporte e que iria enfeitar as casinhas dos lateiros  ao serviço da nação.


Claro que também se negociava a gasolina , as batatas, a carne e até as mulatas e, é claro, que não eram os milicianos que se metiam nestas aventuras
Eram os Chicos, os senhores que ao saberem que estava para fechar esta quantidade enorme de torneiras, se revoltaram e deram voz à sua indignação.
Nunca esperaram que depois outras vozes dissessem outras palavras entre as quais liberdade.
Foram esses quase heróis que falaram em matança no Campo Pequeno, que ainda torturaram nos quartéis depois de Abril, que nunca souberam soletrar palavras como paz ou igualdade, que depois de mais de 30 anos de silêncio, sem nada produzirem ou partilharem, cheios de benesses e fardas e estrelas, são esses lordes que, agora, que lhes cortaram o subsídio e algumas mordomias, voltam ao palco para dizer que é fácil fazer outra revolução.
Senhor Otelo, senhor Lourenço, tenham algum discernimento e alguma vergonha e, em nome da Pátria que não sei se algum dia respeitaram.
Calem-se!

Em jeito de conclusão, acrescento que o senhor António Ribeiro conseguiu comprar a permuta de mobilização do filho mas não conseguiu que alguém lhe vendesse  um pedaço de vida e o seu menino mais velho partiu aos 57 anos de idade. O pai  por cá ficou mais uns 14 ou 15 meses e depois quis partir também.
O seu outro filho, agora com perto de 70 anos acorda muitas vezes assustado porque Angola é  um vendaval  incontrolável que se aproveita da fragilidade da sua velhice e chora sempre que os netos fazem perguntas sobre  a guerra onde combateu mas que  não percebeu.  
Recebe, anualmente, a esmola de 100 euros, dada pelo senhor Paulo Portas e amiúde, recorda  os camaradas, todos milicianos, que por lá ficaram estilhaçados.
Passaram-se mais de 40 anos o que fizeram estes lateiros enfeitados de estrelinhas pelos soldados portugueses que lhes defenderam as costas no ultramar?
Meus senhores, saiam das vossas coutadas, façam uma revolução nas vossas consciências, se é que as têm, e respeitem  o sofrimento e o heroísmo dos soldados que (ao contrário destes generais de meia tijela e mais de uma gamela) souberam obedecer, defender e honrar o nome de Portugal.




Ainda Hoje, a Guerra



Oh vó, o avô andou de verdade na guerra?
Era muito longe? Como se chamava a terra?
Demorou mais que uma semana a lá chegar?
Ele não teve medo de ir tantos dias no mar?
Não podia discordar, dizer que não queria ir?
E se ele se revoltasse ou tentasse fugir?
O avô era tão magrinho! Quantos anos tinha?
A mãe dele deve ter chorado muito quando ficou sozinha
Era muito tempo… dois anos, dois anos e tal!
Iam só soldados, só daqui de Portugal?
Nessa altura, ele já era teu namorado?
Deve ter sentido tantas, tantas saudades, coitado!
Avô tinhas roupas de tropa? E metralhadora também?
Sabes, eu acho que tu nunca mataste ninguém
Viste algum dos teus amigos morrer ou ficar deficiente?
E depois, ficavam lá? Que faziam a essa gente?
Olha avô, sei que não foste feliz. Tenho a certeza.
Porque na terra da guerra há fome, há dor, há tristeza.


Assim questionam os netos para tentar perceber
As lágrimas de recordar, o tempo que faz sofrer
Se para mais não serviu essa dura realidade
Que ao menos os jovens saibam o preço da liberdade.
Aproveitem a alegria e a força de ser capaz
De ter voz neste país e encher as ruas de Paz.
E não se esqueçam que a vida corre tão rapidamente
Que Abril, é sol de um dia, numa Primavera ausente


In “Poetas de Sempre”




(Texto e poema de Maria de Lourdes dos Anjos, publicados em14-nov-11, na edição n.º 43 do jornal online ETC e TAL: