MOTE:

"Eu sou uma autêntica bomba abandonada! Temo explodir a qualquer momento..."
- Frase de um ex-combatente, anónimo.

Amigos

terça-feira, 26 de abril de 2011

MOÇAMBA

Menino pequeno,
gaiato,
moreno,
com medo do cão.
Risada gostosa,
traquinice pronta,
terno coração.
Criança feliz,
livre de cuidados
vivia contente.
Cresceu e aprendeu
que a vida magoa
quem cresce e aprende.
Aprendeu saudade,
dor, separação.
Almoçou tristeza.
Jantou solidão.
Confuso e inseguro
tacteia no escuro,
procura a verdade.
Cansado,
dorido,
recorda o passado,
mata-o a saudade.
Não sabe o que quer.
Não sabe onde vai.
Não sabe o que sente.
Inerte a vontade,
perplexo o olhar,
nem sabe se é gente.
...............................
Menino crescido
vagueia perdido,
só, na multidão.
Que simples que era
ter medo somente
dos dentes de um cão.
 
Suzette Costa

Imagem: sapo.pt

domingo, 24 de abril de 2011

CÓDIGO DE BARRAS

Desenho de: J-Leitão Baptista
 
era abril de 1974
soltavam-se as amarras.
hoje os políticos são só retrato
nós um código de barras.
 
eduardo roseira
in: "a colheita íntima"
poesia, 2003
lavra...Editorial, Gaia

domingo, 17 de abril de 2011

CANÇÃO DE BAGARILA

Em Bagarila, com os deuses da noite,
sei de que lado sopram os ventos de África.
E a alma das pedras, corcovada, estática,
ensina a permanecer, caso o inimigo se afoite.

Vila Cabral, a 32 quilómetros.
Planalto de Lichinga.
Uma cidade armada,
arame-farpada
até aos dentes.

O inimigo, e nós,
sabemos que, entrementes,
as Kalashs cantam,
estremece Inhaminga.

O inimigo move-se no arco dos azimutes.
Célere é a impulsão dos bidons de gasolina,
ao longo da negra vertigem do asfalto.

Baionetas caladas
perfuram a noite.
Permaneçode pedra
transmudado em basalto.

Manuel Ferreira
In: "Tempo"

quinta-feira, 14 de abril de 2011

OS IDOS ANOS 60

em memória do meu irmão António (1952-1972)

Dizem que foi a década de todas
ou, enfim, das maiores
convulsões sociais e de costumes.

Cá no rectângulo pouco se notava
embora já houvesse televisão
e vanguardas literárias
e algumas mulheres tomassem já a pílula
e as primas mais velhas começassem 
a usar mini-saia.

Era uma época diferente:
ensinava-se ainda a respeitar
a autoridade dos mais velhos
e a venerar a antiga trilogia
em que já menos gente acreditava.
Nas escolas havia grandes mapas
de Angola, Moçambique e das restantes
províncias ultramarinas
para mostrar que Portugal media
bem mais do que a Europa.
Aprendíamos tudo: a ler, a fazer contas
e a decorar sem saber como
todas as dinastias e batalhas,
todos os rios com os seus afluentes
e todos os ramais de cada linha férrea.

Mais tarde, pouco a pouco, percebíamos
que o mundo era maior,
que era uma coisa estranha e fascinante
e em 68 ou 69
era através de ti que eu descobria
os Beatles e os Stones;
as canções do Bob Dylan protestando
contra a eterna guerra do Vietname;
as barricadas de Paris;
e dietlamida do ácido lisérgico
que alguns tomavam, como se o infinito
fosse apenas questão de bioquímica;
os livros e os discos proibidos
que toda a gente ouvia;
o retrato do Che, obrigatório,
que também tu quiseste pôr no quarto;
e as emissões de Argel em ondas curtas
que nas noites de férias escutávamos
com o prazer dos gestos clandestinos
p'la madrugada fora
no pátio dessa quinta onde não mais voltei.

Era depois da morte, meu irmão
- pobre revolucionário do Vavá,
adolescente em fuga até ao fim,
rebelde e todavia inofensivo
como outros james Deans da Avenida de Roma
com quem ias colar alguns cartazes
nas eleições de 69
irrompendo nas motos a alta velocidade
em busca de razões para salvar o mundo
ou nisso procurando simplesmente
alguma adrenalina.

era depois da morte, irmão mais velho,
anjo de puro fogo ou puro vento,
paradigma dos meus anos 60,
confiando talvez noutro futuro
que nunca conheceste e sempre me pareceu
um tanto folclórico, é verdade
- porque eu, que já não fui revolucionário,
me habituei depressa a contemplar
os logros dessa década afinal
com o seu quê de sinistro
embora hoje tenda a comover-me
com os mitos fundadores da tua juventude
graças ao teu sorriso
cuja luz nunca soube decifrar.

Passaram trinta anos, cresceu já
isso a que chamam outra geração:
este rectângulo é mais europeu, 
tornámo-nos um pouco mais parecidos
com o resto do planeta, mas não sei
que monstro devorou a nossa eternidade,
que sombra ocupa agora o teu lugar
neste mundo mudado, neste mudo
aceno do milénio quando volto
a essa década infantil
só para te perguntar trinta anos depois:
porque me abandonaste?

Fernando Pinto do Amaral,
In: "Poemas Escolhidos (1999-2007)"
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2007 

domingo, 10 de abril de 2011

AS MEDALHAS...



entre minas
emboscadas
e cruzamentos
de metralhas...
ganhei várias
medalhas...

da guerra
coube-me em sorte
uma medalha...
...a da morte...

da juventude
com futuro distante
coube-me
uma medalha...
feita de sangue...

do ser mau
vil e atroz
por via da chamada
"lei" da sobrevivência
deram-me
a medalha...
...da violência...

do hábito
de tanto ouvir
o terror
em cada grito
ganhei outra
medalha...
...a de achar tudo...
...normal e bonito...

do para 
não morrer
matar...
matar...
a guerra era
de forma animal
uma autêntica festança
onde tudo era normal:
- aniquilar homem
mulher
ou criança...
e por tal
tive
a medalha...
...da matança...

hoje recordo
o cumprir da ordem
na certeza do dever
e de na melhor desordem
provocar sofrimento
matando para não morrer
na mais digna...
...indignidade.
cumprindo a cada momento
o comprar do amanhã/idade
e ganhando
a medalha...
...do esquecimento...

eduardo roseira

Imagem: sapo.pt

sábado, 2 de abril de 2011

NOCTURNO DE 1961




Fulguram lâminas na noite…
Escura incerteza a nossa.
Cantemos fábulas, apólogos, fantasias.
Fulguram lâminas na noite…
Sonhar sonhe quem possa,
a situação não se coaduna com poesias.

Chove chuva de caju, ténue cortina
a envolver a noite num manto neblina.

Noite morna densa de mistérios,
olhando lá para fora é só pavor
… silêncio, escuridão, calor…
Calem-se por favor!
Já chega de impropérios…

Rasga o silêncio um grito de rajada
tiros isolados, os ecos no escuro…

Depois, não há mais nada…
Depois, não há mais nada…

Bebam mais – que raio – bebam mais…
Talvez que a nossa aurora seja nunca
talvez que seja o nosso nunca mais;

Que fiquem na noite fechada
sob o céu profundo e puro.

Depois, não há mais nada…
Depois, não há mais nada…

Fulguram lâminas na noite
Estranha tristeza a nossa.
Contamos contos, histórias, elegias…

Fulguram lâminas na noite
sonhar, sonhe quem possa,
a situação não se coaduna com poesias…

Neves e Sousa (Luanda 1961)
In:”Macuta e Meia de Nada”