MOTE:

"Eu sou uma autêntica bomba abandonada! Temo explodir a qualquer momento..."
- Frase de um ex-combatente, anónimo.

Amigos

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

FANTASMAS


esta noite
os velhos fantasmas visitaram-me
roubaram-me a rara
tranquilidade do sono
e iludiram-me de novo os sonhos

esta noite
os velhos fantasmas
instalaram-se em mim
e do meu intimo pescaram
as atormentadas  memórias
nunca lembradas
entre mil tentações
e guardados ais
que a poeira do tempo cobriu
mas não enterrou

esta noite
os velhos fantasmas
presentearam-me com
imagens/lembranças,
de quem nunca fugiu
ou se acobardou

esta noite
os velhos fantasmas
ofereceram-me recordações
que a vida iludiu
mas não apagou.

esta noite
os velhos fantasmas,
entre os sonhos trocados,
explicaram-me que:
“os sonhos são desertos
com navios encalhados!”(1)


eduardo roseira
  madrugada de
   29-dez-2011
     VNGaia

(1)   Ana Paula Tavares, poeta angolana
In: “Manual para amantes desesperados”
Ed. Caminho, Lisboa, 2007

Imagem: sapo.pt

domingo, 4 de dezembro de 2011

VERGONHA


1.
Especialistas ingleses e norte-americanos estudaram comparativamente o esforço das Nações envolvidas em vários conflitos em simultâneo, principalmente no que respeita à gestão desses mesmos conflitos, nos campos da logística geral, do pessoal, das economias que os suportam e dos resultados obtidos.
Assim, chegaram à conclusão que em todo a Mundo só havia 2 Países que mantiveram 3 Teatros de Operações em simultâneo: a poderosa Grã-Bretanha, com frentes na Malásia (a 9.300 km, de 1948 a 1960), no Quénia (a 5.700 km, de 1952 a 1956) e em Chipre (a 3.000 km, de 1954 a 1959) e o pequenino Portugal, com frentes na Guiné (a 3.400 km), Angola (a 7.300 km ) e Moçambique (a 10.300 km, de 1961 a 1974) 13 anos seguidos. Estes especialistas chegaram à conclusão que Portugal, dadas as premissas económicas, as dificuldades logísticas para abastecer as 3 frentes, bem como a sua distância, a vastidão dos territórios em causa e a enormidade das suas fronteiras, foi aquele que melhores resultados obteve.
Consideraram por último, que as performances obtidas por Portugal, se devem sobretudo á capacidade de adaptação e sofrimento dos seus recursos humanos e à sobrecarga exigida a um grupo reduzido de quadros dos 3 Ramos das Forças Armadas, comissão atrás de comissão, com intervalos exíguos de recuperação física e psicológica. Isto são observadores internacionais a afirmá-lo.
Conheci em Lisboa oficiais americanos com duas comissões no Vietname. Só que ambos com 3 meses em cada comissão, intervalados por períodos de descanso de outros 3 meses no Havai.
Todos os que serviram a Pátria e principalmente as gerações de Oficiais, Sargentos e Praças dos 3 Ramos das Forças Armadas que serviram durante 13 anos na Guerra do Ultramar, nos 3 Teatros de Operações, só pelo facto de aguentarem este esforço sobre-humano que se reflectiu necessariamente em debilidades de saúde precoces, mazelas para toda a vida, invalidez total ou parcial, e morte, tudo ao serviço da Pátria, merecem o reconhecimento da Nação, que jamais lhes foi dado.

2.
Em todo o Mundo civilizado, e não só, em Países ricos, cidadãos protagonistas dos grandes conflitos e catástrofes com eles relacionados, vencedores ou vencidos, receberam e recebem por parte dos seus Governos, tratamentos diferenciados do comum dos cidadãos, sobretudo nos capítulos sociais da assistência na doença, na educação, na velhice e na morte, como preito de homenagem da Nação àqueles que lutaram pela Pátria, com exposição da própria vida.
Todos os que vestiram a farda da Grã-Bretanha, França, Rússia, Alemanha, Itália e Japão têm tratamento diferenciado; idem para a Polónia e Europa de Leste, bem como para os Brasileiros que constituíram o Corpo Expedicionário destacado na Europa.
Idem para os Malaios, Australianos, Filipinos, Neo-zelandeses e soldados profissionais indianos.
Nos EUA a sua poderosíssima "Veterans War " não depende de nenhum Secretário de Estado, nem do Congresso, depende directamente do Presidente dos EUA, com quem despacha quinzenalmente. Esta prerrogativa referendada por toda uma Nação, permite que todos aqueles que deram a vida pela Pátria repousem em cemitérios espalhados por todo o Mundo, duma grandiosidade, beleza e arranjo ímpares, ou todos aqueles que a serviram, tenham assistência médica e medicamentosa para eles e família, condições especiais de acesso às Universidades, bolsas de estudo, e outros benefícios sociais durante toda a vida.
Esta excepção que o povo americano concedeu a este tipo de cidadãos é motivo de orgulho de todos os americanos.
O tratamento privilegiado que todo o Mundo concedeu aos cidadãos que serviram a Pátria em combates onde a mesma esteve representada, é sufragado por leis normalmente votadas por unanimidade.
Também os civis que ficaram sujeitos aos bombardeamentos, quer em Inglaterra, quer em Dresden, quer em Hiroshima e Nagasaki, têm tratamento diferenciado.
Conheço de perto o Irão. Até o Irão dá tratamento autónomo e especifico aos cidadãos que combateram na recente Guerra Irão-Iraque, onde morreram 1 milhão de iranianos.
Até Países da África terceiro-mundista e subdesenvolvida, como o Quénia, atribuiu aos ex-maus-maus, esquemas de protecção social diferentes dos outros cidadãos.
Em todo o Mundo, menos em Portugal.
No meu País, os Talhões de Combatentes dos vários cemitérios, estão abandonados, as centenas de cemitérios espalhados pela Guiné, Angola, Moçambique, Índia e Timor, abandonados estão, quando não, profanados. É simplesmente confrangedor ver o estado de degradação onde se chegou. Parece que a única coisa que está apresentável é o monumento do Bom Sucesso - Torre de Belém, possivelmente porque está à vista e porque é limpo uma vez por ano para a cerimónia publica que lá se realiza. Até grande parte dos monumentos municipais aos Mortos da Guerra do Ultramar vão ficando abandonados.
No meu País, a pouco e pouco, foi-se retirando a dignidade devida aos que combateram pela Pátria, abandonando os seus mortos, e retirando as poucas “migalhas” que ainda tinham diferentes do comum dos cidadãos, a assistência médica e medicamentosa, para ele e cônjuge, alinhando-os “devidamente” por baixo.
ATÉ NISTO CONSEGUIMOS SER DIFERENTES DE TODOS OS OUTROS.
No meu País, os políticos confundem dum modo ignorante ou acintoso, militares com polícias e funcionários públicos (sem desprimor para as profissões de polícias e funcionários públicos, bem entendido).
Por ignorância ou leviandade os políticos permanentemente esquecem que o estatuto dos militares não lhes permite, nem o direito de manifestação, nem de associação sindical, além de ser o único que obriga o cidadão a dar a vida pela Pátria.
Até na 1a República, onde grassava a indisciplina generalizada, a falta de autoridade, o parlamentarismo balofo, as permanentes dificuldades financeiras e as constantes crises económicas, não foram esquecidos todos aqueles que foram mandados combater pela Pátria na 1a Guerra Mundial (1914-18), decisão política muito difícil, mas patriótica, pois tinha a ver com a defesa estratégica das possessões ultramarinas.
Foram escassos 18 meses o tempo que durou a Guerra para os portugueses, mas todos aqueles que foram mobilizados e honraram Portugal, tiveram medidas de apoio social suplementares diferentes de todos os outros cidadãos portugueses, além duma recepção ímpar por todo o Governo da Nação em ambiente de Grande Festividade Nacional.
Naquela altura os políticos portugueses dignificaram a sua função e daqueles que combateram pela Pária.
Foram criados Talhões de Combatentes em vários cemitérios públicos, à custa e manutenção do Estado, foram construídos monumentos grandiosos em memória dos que deram a vida pela Pátria, foi concebido um Panteão Nacional para o Soldado Desconhecido na Sala do Capítulo do Mosteiro da Batalha, com Guarda de Honra permanente, 24 sobre 24 horas, foram criadas pensões especiais para os mutilados, doentes e gaseados, foram criadas condições especiais de assistência médica e medicamentosa para os militares e famílias, nos Hospitais Militares, numa altura em que ainda não havia assistência social generalizada como há hoje, foi criado um Lar especifico para acolher a terceira idade destes militares em Runa (é importante relembrar que, em 1918, se decidiu receber e tratar os jovens com 20 anos em 1918, quando estes tivessem mais de 65 anos de idade) e, por último foi criada a Liga dos Combatentes que, de certo modo, corporizava todo este apoio especial aos combatentes, diferente de todos os outros cidadãos, e era o seu porta-voz junto das instâncias governamentais. (Uma espécie de “Veteran’s War” à portuguesa.)
Foi toda uma Nação, com os políticos à frente, que deu tudo o que tinha àqueles que combateram pela Pátria, apesar da situação económica desesperada e de quase bancarrota.
Na altura seguimos naturalmente o exemplo das demais nações.
Agora somos os cínicos que não seguem os exemplos generalizados do tratamento diferenciado aos que serviram a Pátria em combate.
É SIMPLESMENTE UMA VERGONHA!
Haveria muito mais para dizer para chamar a atenção deste Ministro da Defesa e deste Primeiro-Ministro, ambos possivelmente com carências de referências desta índole nos meios onde se costumam movimentar, sobretudo no que respeita à comparação dos vencimentos, regalias e mordomias dos que expuseram ou deram a vida pela Pátria e aqueles, que antes pelo contrário, sempre fugiram a essa obrigação.

Assina: Vítor Santos
Coronel Reformado
4 Comissões de Serviço no Ultramar
10 anos de Trópicos
Deficiente das Forças Armadas por doença adquirida e agravada em Campanha
Quase 70 anos de idade
Sem acumulação de cargos
Sem Seguro de Saúde pago pelo Estado ou EP
Sem direito a Subsidio de Reinserção
Sem cartão de crédito dourado sem limite de despesas a expensas do Estado Sem filhos empregados no Estado por conhecimentos pessoais
Sem o direito a reformas precoces de deputado ou autarca
Sem reformas precoces e escandalosas estilo Banco de Portugal ou CGD
Sem contratos que prevêem indemnizações chorudas
Sem direito a ficar, de borla, com os carros que o Estado pagou em Leasing
Sem fazer contratos chorudos de avenças como os que se fazem com Gabinetes de Advogados e Economistas
Sem Pensão de Reforma acima do ordenado do Presidente da República
Com Filhos desempregados

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Angola era deles







 
Em meados dos anos 60, talvez entre 63 e 67, o senhor António Ribeiro, natural da freguesia de Paranhos, concelho do Porto, casado, residente na freguesia do Bonfim, industrial, bem apessoado e, economicamente, bem instalado, vê-se com dois filhos cumprindo o serviço militar. O mais velho, quase livre, é de repente mobilizado para S. Tomé e Príncipe e o outro, da fornada seguinte, incorporado num batalhão de apoio social no quartel de Évora, com guia de marcha para Angola.
Dois filhos dois amores e muitas lágrimas.


Ontem, como hoje, quem tem unhas toca viola e, quem pode, até contrata quem lhe ensine as músicas. Procura um e outro amigo, vai à fala com o amigo do outro amigo e consegue pagar a permuta com outro soldado para ir na vez do filho mais velho, rumo a S. Tomé.
E agora, o outro?
Pois Angola, tal como a Guiné, eram lugares de más novas, de medos, de partidas sem certeza de chegadas. A luta era agora mais renhida e era urgente correr e galgar barreiras.
Abrem-se portas de velhos militares na reserva e de "primos" médicos e, o rapaz mais novo, é internado no Hospital Militar do Porto para fazer exames e talvez descobrir uma doença incompatível com os ares angolanos.
E os favores vão-se pagando, rezando missas e dando esmolas aos pobres do costume.
Desta vez a coisa não era fácil, se calhar não se conseguia... os relatórios eram pouca coisa e dois filhos da mesma casa era muita uva para uma só videira.


Dobra-se a parada, há mais uns contactos, mais uma esperança, mais uma velinha para o santo Quericalho da Maia e... nada feito.
Já com algum atraso em relação aos colegas, parte o nosso jovem da estação de Campanhã, rumo a Évora para formar batalhão e partir para o norte de Angola.
Quase ao fim de 24 meses de serviço militar no continente, toca a partir para dar mais cerca de 28 meses numa terra tão distante quanto desconhecida dessa África que diziam também ser nossa..


Restavam  agora os famosos aerogramas oferecidos por senhoras bondosas que formavam o movimento nacional feminino (quase todas esposas amantíssimas de militares de carreira, recrutados e bem pagos) que diziam apoiar os soldadinhos, coitadinhos, que estavam longe do puto (assim chamavam a Portugal continental), longe das mãezinhas e das noivas e, é claro, as mensagens de natal desejando  “prospriedades" para o ano novo e dos beijinhos para a madrinha de guerra da sua aldeia.
Este filho mais novo do senhor Ribeiro, ainda teve a sorte do pai ser um industrial com massinha para lhe pagar uma viagem, a "casa" a meio da comissão, e portanto matar saudades e carregar baterias para outro tanto tempo de separação, entretanto esbatida por uns salpicões ou um presunto regadinho com champanhe que lhe iam enviando, via aérea, com portes caríssimos, para uma tainada com os amigos, lá longe onde o sol ainda castiga mais.


Entretanto, os senhores militares de carreira, estavam muito bem de vida.
Pediam sempre para fazer três comissões no Ultramar.
Na Guiné não convinha muito, porque havia muita mortandade mas, mesmo assim, foi por lá que o Valentim enriqueceu com o negócio das batatas para a cantina...
Agora, Angola ou Moçambique era como quem limpa o rabo a um menino.
Com o que ganhava na 1ª comprava-se um bom terreno. Com a 2ª construía-se o palacete e, com a 3ª Comissão, mobilava-se o sonho, comprava-se um carrito para a "saudosa esposa" e ainda se fazia uma promissória gorda para o futuro.
Além disso, nas oficinas de apoio direto, onde se faziam  as reparações  e respetivas manutenções das viaturas militares, com materiais do estado português e a mão-de-obra dos soldados parolos do puto, faziam-se janelas, portões, gradeamentos e tudo o que era possível depois enviar para Lisboa, a custo zero, também no transporte e que iria enfeitar as casinhas dos lateiros  ao serviço da nação.


Claro que também se negociava a gasolina , as batatas, a carne e até as mulatas e, é claro, que não eram os milicianos que se metiam nestas aventuras
Eram os Chicos, os senhores que ao saberem que estava para fechar esta quantidade enorme de torneiras, se revoltaram e deram voz à sua indignação.
Nunca esperaram que depois outras vozes dissessem outras palavras entre as quais liberdade.
Foram esses quase heróis que falaram em matança no Campo Pequeno, que ainda torturaram nos quartéis depois de Abril, que nunca souberam soletrar palavras como paz ou igualdade, que depois de mais de 30 anos de silêncio, sem nada produzirem ou partilharem, cheios de benesses e fardas e estrelas, são esses lordes que, agora, que lhes cortaram o subsídio e algumas mordomias, voltam ao palco para dizer que é fácil fazer outra revolução.
Senhor Otelo, senhor Lourenço, tenham algum discernimento e alguma vergonha e, em nome da Pátria que não sei se algum dia respeitaram.
Calem-se!

Em jeito de conclusão, acrescento que o senhor António Ribeiro conseguiu comprar a permuta de mobilização do filho mas não conseguiu que alguém lhe vendesse  um pedaço de vida e o seu menino mais velho partiu aos 57 anos de idade. O pai  por cá ficou mais uns 14 ou 15 meses e depois quis partir também.
O seu outro filho, agora com perto de 70 anos acorda muitas vezes assustado porque Angola é  um vendaval  incontrolável que se aproveita da fragilidade da sua velhice e chora sempre que os netos fazem perguntas sobre  a guerra onde combateu mas que  não percebeu.  
Recebe, anualmente, a esmola de 100 euros, dada pelo senhor Paulo Portas e amiúde, recorda  os camaradas, todos milicianos, que por lá ficaram estilhaçados.
Passaram-se mais de 40 anos o que fizeram estes lateiros enfeitados de estrelinhas pelos soldados portugueses que lhes defenderam as costas no ultramar?
Meus senhores, saiam das vossas coutadas, façam uma revolução nas vossas consciências, se é que as têm, e respeitem  o sofrimento e o heroísmo dos soldados que (ao contrário destes generais de meia tijela e mais de uma gamela) souberam obedecer, defender e honrar o nome de Portugal.




Ainda Hoje, a Guerra



Oh vó, o avô andou de verdade na guerra?
Era muito longe? Como se chamava a terra?
Demorou mais que uma semana a lá chegar?
Ele não teve medo de ir tantos dias no mar?
Não podia discordar, dizer que não queria ir?
E se ele se revoltasse ou tentasse fugir?
O avô era tão magrinho! Quantos anos tinha?
A mãe dele deve ter chorado muito quando ficou sozinha
Era muito tempo… dois anos, dois anos e tal!
Iam só soldados, só daqui de Portugal?
Nessa altura, ele já era teu namorado?
Deve ter sentido tantas, tantas saudades, coitado!
Avô tinhas roupas de tropa? E metralhadora também?
Sabes, eu acho que tu nunca mataste ninguém
Viste algum dos teus amigos morrer ou ficar deficiente?
E depois, ficavam lá? Que faziam a essa gente?
Olha avô, sei que não foste feliz. Tenho a certeza.
Porque na terra da guerra há fome, há dor, há tristeza.


Assim questionam os netos para tentar perceber
As lágrimas de recordar, o tempo que faz sofrer
Se para mais não serviu essa dura realidade
Que ao menos os jovens saibam o preço da liberdade.
Aproveitem a alegria e a força de ser capaz
De ter voz neste país e encher as ruas de Paz.
E não se esqueçam que a vida corre tão rapidamente
Que Abril, é sol de um dia, numa Primavera ausente


In “Poetas de Sempre”




(Texto e poema de Maria de Lourdes dos Anjos, publicados em14-nov-11, na edição n.º 43 do jornal online ETC e TAL:

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

MILONGA DO MORTO

Sonhei-o nesta casa
entre paredes e portas.
Deus aos homens permite
sonhar coisas que são certas.

Sonhei-o pelo mar dentro
numas ilhas glaciais.
Que nos digam o resto
a campa e os hospitais.

Uma dessas províncias
do interior foi sua terra.
(Não convém que se saiba
que morre gente na guerra.)

Tiraram-no do quartel
puseram-lhe nas mãos
as armas e mandaram-no
morrer com seus irmãos.

Agiu-se com a maior prudência,
falou-se de modo prolixo.
Entregaram-lhe ao mesmo tempo
o rifle e o crucifixo.

Ouviu inúteis arengas
de inúteis generais.
Viu o que nunca tinha visto,
o sangue nos areais.

Ouviu vivas e ouviu morras,
ouviu o clamor da gente.
E ele só queria saber
se era ou não valente.

Soube-o naquele momento
em que lhe entrava a ferida.
Disse Não tive medo
quando o deixou a vida.

A sua morte foi uma secreta
vitória. Não pasmem
que me dê inveja e pena
o destino daquele homem.

Jorge Luís Borges,
in: "Os conjurados"

Imagem: sapo.pt

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

ENCONTRO FORA DO TEMPO

in memoriam de José Carlos Godinho Ferreira de Almeida
Desces
da vida de além-morte
que me alumia.

Sereno vens
sereno e forte
servir de guia.

Apareces
da noite.
Marcas o norte
rasgas o dia.

Na amargura
da minha escura, crucial poesia
entreteces
com brandura e valentia
a ligadura de uma ferida
que sangra, tortura e arde -
e só não cura quem nesta vida
fugindo à lida se acovarde.

Cresces na funda raiz
de português meu irmão
filhos do mesmo país
nascidos do mesmo chão
floresces na cicatriz
e a abrir flores-de-liz
em chagas do coração
mátria, pátria, matriz
da universal condição.

(e aqui, por quanto fiz quanto não quis,
alheio à tua exemplar lição,
ó meu Irmão, ó minha Terra, ó meu País,
perdão milhões de vezes, perdão, perdão).

A sede que no barro se levanta
da fome que me afunda sob a lama
agora, mais que nunca, chora e canta
no rasto do teu vulto à voz que exclama:

Quando se vive e se morre
para cumprir o Dever
sem medo
e sem alarde -

para morrer não é cedo

para viver não é tarde.

Fernando Pinto Ribeiro (Guarda, 1928/Lisboa, 2009)
in: "O Cisne Submerso", Edium Editores, 2010


Imagem: sapo.pt

sábado, 1 de outubro de 2011

ODE À ESPERANÇA

 

do outro lado do esquecimento
há uma memória à espera de acordar
que o fogo a toque
o gume do sofrimento
a fragrância de um lírio
a evocação de um momento

do outro lado do esquecimento
há quem nos espera
na insónia do tempo
para acordar o sangue e o verbo

como se ao dar-se em sacrifício alguém soubesse
que o fim não é um caso encerrado
que a seguir ao fim há um depois

Joaquim Murale
in: retirado com a devida vénia do Jornal "Poetas & Trovadores",
de abril/junho de 2011, com alteração após chamada de atenção
do autor, ao qual da nossa parte pedimos desculpa.

Imagem: sapo.pt

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Texto de Fernando Peixoto, extraído do livro: "A Linguagem do Silêncio"

……….
O vestido rodado de Lígia começava a tornar-se insuportável: despi-lhe o vestido, único protetor
da sua nudez de castidade momentânea, e apertei-lhe com suavidade as nádegas quentes. Entretanto, as mãos de Lígia percorriam-me as curvas do ventre  e os eus dedos tateavam as curvaturas do meu sexo humedecido de suor e tensão. E ela, como estaria ela? Estaria o seu clitóris tão raivoso quanto a sua boca e as suas mãos? Apoiada uma das mãos sobre as nádegas de Lígia, mesmo junto ao desfiladeiro do ânus, dirigi a outra para a sua vagina. Friccionei-lhe o clitóris, introduzindo os dedos bem no interior da humidade viscosa da vagina em fogo, latejante.
Sacudido  por um profundo vómito, afastei-me rápido de Lígia e, ridículo, corri para o quarto-de-banho.

Não cheguei a acabar de beber a cerveja.
- Chega aqui, depressa.
- Estou a beber, pá. Tem calma. Ou é assim assunto tão urgente?
O cabo-enfermeiro, excitadíssimo de gozo, tirou-me a garrafa da mão e acrescentou:
- Ou vens já, ou perdes o melhor espetáculo da tua vida.
Intrigado, perguntei-lhe ainda:
- Mas o que é? Não me podes dizer?
Sem resposta, puxado por um braço, segui o cabo até ao barracão que o improviso e a imaginação transformaram em enfermaria do destacamento. À porta aglomeravam-se homens, mulheres e crianças: negros da povoação que vinham ao quartel para um tratamento ou uma injeção, para o diagnóstico erudito do cabo João, o doc de circunstância que fornecia penicilina em quantidades sempre insuficientes para as blenorragias coletivas. Alice, a negra dos olhos de amêndoa, lá estava também, com um pé embrulhado num pedaço de pano encharcado em sangue. «Foi um tijolo caiu no pé, fez frida nos dedo», disse-me ela quando os meus olhos de espanto e amizade se deslocaram para o fundo da sua perna linda, dum castanho ovomaltine.
Entrei seguido pelo cabo que, com o indicador sobre a boca, me solicitou um silêncio cúmplice. Depois abriu levemente a cortina e com um gesto convidou-me a espreitar.
Frente a nós, sobre a marquesa, estava estendida uma velha. Percebi-lhe uma certa irritação na forma exuberante como gesticulava acompanhando monossílabos mais ao menos grotescos, proferidos no dialeto kikongo que eu não entendia. De pernas esqueléticas, abertas esmesuradamente, os pés disformes e calosos, apertava nas mãos fechadas o pano que a envolvia, enquanto o alferes Simão, sem luvas, explorava os entrefolhos da vagina e contemplava, guloso, o sexo ancilosado da velha.
- Mas este gajo percebe alguma coisa disto?
- Nada – respondeu-me o cabo – O gajo é tarado, e como a velha se queixava da barriga, ele quis ver-lhe a cona. Disse que tratava dela num instante.
- E ela deixa?
Um misto de indignação e espanto percorria-me o cérebro. O que via era demasiado inverosímil e nojento para aceitar como real.
- Então, que queres? O gajo é alferes e a pretalhada julga que o gajo sabe de tudo. Deixa-se levar.
Senti-me tonto. Uma náusea enorme começou a revolver-me. As pernas tremeram-me e tive de encostar-me à parede do barraco. Nesse momento saía o alferes, feliz. O cabo João perguntou-lhe, matreiro:
- Foi a primeira vez, não foi, meu alferes?
Sorrindo e piscando o olho ao cabo, o alferes Simão procurou disfarçar enquanto se encaminhou apressado para a retrete:
- Não! Era o que faltava!
O cabo João apercebeu-se então da minha palidez estranha.
- O que tens, pá? Estás branco… e a suar!
Não respondi. Não conseguia responder. De um jato projetei pela boca a cerveja e a sande que ingerira momentos antes. Cambaleando, atravessei a parada em vómitos sucessivos perante o espanto dos negros que aguardavam a vez de serem atendidos.
Quando entrei na retrete, surpreendi o alferes Simão, de pé, encostado à parede de madeira, masturbando-se.

Eu sei, Lígia.
Não posso, não quero, não devo culpar-te.
É estranha esta forma sinuosa de percorrer os caminhos do nosso quotidiano. È insólito – no mínimo – este vai-vém de determinação e de fuga, esta viscosidade de aranha com que insuflamos as nossas relações. Mas a teia que erguemos – ambos – não chega para suster o declive dos desfiladeiros da angústia por onde nos vemos impelidos a passar.
Os gritos do desespero não sustem a nudez da minha náusea constante e crescente. Que não vem de ti, mas talvez do que representas, da memória coletiva que refletem os teus gestos, ou da passividade com que rodeias a maior parte das nossas horas comuns.
Logo hoje, que foste diferente, que pela primeira vez tentaste aproximar-te da preversão que conferiria ao teu rosto e aos teus gestos uma imagem nova e infinitamente mais atrativa, logo hoje que pensei colher em ti miríades de surpresas no gozo com que disfrutaria as linhas redondas do teu corpo, o passado avançou num galope irrefreável, enchendo de poeria e de esterco as veredas da minha memória adormecida.
Já não sei, Lígia, se preferes a mentira meticulosamente preparada. Se a verdade agreste e cortante das arestas álgidas da memória que me persegue.
Não entendeste. Não aceitaste. Chamaste-lhe invenção. «Inadmissível», para empregar o termo exato da tua imaginação irrefreável.
O teu ontem foi bem diferente e por mais estórias que te conte, mesmo que verídicas, acreditas mais na verosimilhança de Max du Veuzit. Freud foi um charlatão propagandista que pretendeu impingir a banha da psicanálise aos pascácios nascituros do século XX, e a guerra colonial um divertimento de velhos para estimular aventuras na juventude hippy dos anos sessenta, proporcionando aos futuros chefes-de-família estórias grotescas e sado-masoquistas.

………. Chegamos a casa juntos. Jantamos juntos. Vemos ambos televisão e continuamos a dormir na mesma cama. No entanto, mesmo à mesa, lado a lado, sentimos a presença incómoda do silêncio que se estatelou no nosso meio. A sua aragem fria arrepia-nos os braços e impede-nos de respirar, como se o espaço entre as nossa bocas estivesse carregado da sua presença. Também ele orienta os nossos olhos, para que as nossas retinas se não cruzem, e afasta os nossos joelhos quando, sentados lado a lado, estimulamos o monólogo do televisor.

Há dias, no Café, deixei cair distraidamente o pacote de açúcar, ainda fechado, dentro da chávena. Depois tentei pescá-lo com a colher, o que consegui à terceira tentativa. Angélica, ao meu lado, ria divertidíssima e eu acabei rindo com ela.
Vou fazer o mesmo. De propósito. Se te rires dou-te um beijo e rio-me também. Talvez desta forma possamos dar um pontapé no cu do silêncio.
Já o fiz. Não riste. Apenas um ligeiro olhar de soslaio e de novo o regresso da tua atenção para o vídeo colorido.
Ergui-me: o Silêncio dava as mãos à Indiferença e dançavam juntos os «Contos de Hoffman» de Offenbach.
Dirigi-me à sala-de-estar para escrever um pouco. Angélica passeava, descalça, sobre o quadriculado do papel.

Fernando Peixoto
in: Excerto do Capítulo 10 d’ “A Linguagem do Silêncio” -
- (Ciclo da Guerra Colonial – II), Porto, 1984
    

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

COPO A COPO


“Tome-se um homem,
feito de nada como nós,
e em tamanho natural,
embebeda-se-lhe a carne,
lentamente
duma certeza aguda, irracional,
intensa como o ódio ou como a fome,
depois perto do fim,
agite-se o pendão
e toque-se o clarim.

Serve-se morto.”

Reinaldo Ferreira
In:”Receita para fazer um herói”



vindo do nada da vida saber
no tempo de uma bala relampejar
ter que tudo de mau ser
e aprender a fome de matar

aprender forçadamente
as manhosas malhas da guerra
e aprender a ser heroicamente
menino homem que enterra
o machado da paz
e numa luta copo a copo
deixa de ser rapaz.


eduardo roseira

Imagem: sapo.pt

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Um Cartoon contra o stress...

Porque rir é sempre o melhor remédio, aqui deixo com a devida vénia um Cartoon da autoria de Augusto Cid, comemorativo dos 50 anos sobre o início da Guerra Colonial, publicado hoje, dia 26 de agosto de 2011, no semanário "SOL".

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

AINDA

As nossas frases estão cheias de picadas
de minas a explodir nos substantivos
por dentro do silêncio há emboscadas
não sabemos sequer se estamos vivos.
Os helicópteros passam nas imagens
a meio de uma vírgula morre alguém
e os jipes destruídos estão nas margens
do papel onde talvez para ninguém
se vão escrevendo estas mensagens.

Manuel Alegre,
in:"Antologia da Memória Poética da Guerra Colonial",
Edições Afrontamento, Porto,2011,
org. Margarida Calafate Ribeiro e Roberto Vecchi 

quarta-feira, 11 de maio de 2011

A MEDALHA



de rapaz feito esperança,
a pátria, dele fez soldado.
partiu era eu uma criança
e rápido viu seu tempo caducado.

com uma arma na mão,
em nome do império partiu.
de seis meses era eu então
e no berço apenas me viu.

enviaram-mo feito mortalha,
dizendo-o herói da nossa grei,
trocando-mo por uma medalha.

foi bravura contra a “gentalha”.
eu de fotos apenas o sei.
- o meu pai é uma medalha!


eduardo roseira
In: "a colheita íntima "


Imagem: sapo.pt

terça-feira, 26 de abril de 2011

MOÇAMBA

Menino pequeno,
gaiato,
moreno,
com medo do cão.
Risada gostosa,
traquinice pronta,
terno coração.
Criança feliz,
livre de cuidados
vivia contente.
Cresceu e aprendeu
que a vida magoa
quem cresce e aprende.
Aprendeu saudade,
dor, separação.
Almoçou tristeza.
Jantou solidão.
Confuso e inseguro
tacteia no escuro,
procura a verdade.
Cansado,
dorido,
recorda o passado,
mata-o a saudade.
Não sabe o que quer.
Não sabe onde vai.
Não sabe o que sente.
Inerte a vontade,
perplexo o olhar,
nem sabe se é gente.
...............................
Menino crescido
vagueia perdido,
só, na multidão.
Que simples que era
ter medo somente
dos dentes de um cão.
 
Suzette Costa

Imagem: sapo.pt