MOTE:

"Eu sou uma autêntica bomba abandonada! Temo explodir a qualquer momento..."
- Frase de um ex-combatente, anónimo.

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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

ANO BISEXTO, UM DIA MAIS A CONTAR SAUDADE




M'Pozo, Angola, 29-2-68
Querida Lourdes!
Chegamos ao final de mais um mês e renasce a esperança para um breve regresso.
Por ser fim de mês, durante esta semana não poderei estudar devido ao serviço amontoado que tenho. Não sei mesmo se poderei dedicar-te algum tempo, mas farei o possível por escrever algumas linhas todos os dias.
Neste mês recebi muitas mensagens para decifrar. Para cada uma delas há um processo e para cada processo tenho que elaborar um relatório. Depois, são mais as notas a enviar, material a devolver, participações do material a evacuar, certificados de destruição, etc. Terei muito que fazer e ainda bem, porque assim não penso em mais nada e o tempo passa-se melhor. Tenho ainda em conta as mensagens que estão para decifrar e cifrar, sempre grande obstáculo para poder tomar encargo dos assuntos acima citados.
No próximo dia 10 começo a dar as “Aulas Regimentais”. Vamos lá ver se me saio bem como Mestre-Escola. Os rapazes estão com muita vontade de aprender. Por isso, creio que não será difícil ensiná-los. Ajudá-los-ei ao máximo para que consigam o Diploma.
Hoje está uma noite tipicamente Africana: romântica e cheia de mistério. As estrelas são cintilantes como lantejoulas nos vestidos dos artistas de circo; a lua é risonha; as aves gorjeiam num ritmo de merengue lá no interior da mata; a brisa é morna e suave. Como seria bom se estivesses comigo para desfrutarmos deste prazer que a Natureza nos oferece.
De qualquer modo, fico contigo esta noite e, com um beijo ardente, fecho a página do diário que te ofereço.
Cesário

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Cesário Guedes da Costa,
In: ” Morto por te ver – Cartas de um soldado à namorada (Angola, 1967/1969)”

(Foto de Cesário Guedes da Costa)

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

"TRIÂNGULO" - versos de guerra, amor e ódio.


Noite apagada

Mil riscos de luz veloz
cruzam o espaço
O silêncio abate-se sobre nós
na picada traiçoeira

Vultos velozes
e negros
debandam às cegas dos braços
esguios e nus
das bissapas

Sentem o medo no peito
e levam nas asas
a esperança da vida toda

Ou talvez saúdem a morte...

Um raio de lua
coado
por entre os braços daquele imbondeiro
gigante como a noite longa,
guardião da savana,
visita o nosso silêncio
e o medo
e o grito abafado que ecoa
para dentro do peito

Álvaro Giesta -
Angola (Leste), 1971

In:  "TRIÂNGULO" - versos de guerra, amor e ódio. (a publicar)

Imagem: sapo.pt

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

FESTA


É dia de festa na minha terra.
Há procissões com anjinhos,
andores
e multidões de pessoas com círios,
barracas de farturas,
repletas de gentes
e foguetes a ribombar.
Em honra do Sr. dos Aflitos.

Há festa na minha terra.

Parece que estou a ver,
pois:
passam procissões de militares,
que são os anjinhos.
Vejo barracas,
com farturas deles lá dentro.
Os andores,
São carros de combate,
As multidões de pessoas,
não levam círios, mas…
armas prontas a disparar.
À frente. A abrir a procissão:

Vai o rebenta minhas.
E o ribombar dos foguetes
é substituído pelos tiroteios.
Os soldados…
são uns senhores  muito  aflitos.
Há tristeza onde estou!...

E é dia de festa na minha terra.
Enquanto que para mim:

- È esta a festa durante estes dois anos.

Luíz Jorge, “Ferreirinha, Jr.” – 30/Junho/1968

Imagem: sapo.pt

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A UMA FILHA MORTA



a uma filha morta

ontem a minha dor foi tão grande
como um terramoto
que vertiginosamente correu
para dentro da loucura

foi da espessura da morte...

as árvores podem correr
para mim de braços abertos
as rosas do campo sorrir,
que os lírios choram
por dentro de mim
às portas da sepultura
onde te foram a enterrar

à tua chegada
transformaram-se os céus nocturnos
em nítidos céus
e chama
e calor
e luz
quando tu os abriste
com ígnea chave em tua mão
tão franzina

interrompeu-se o olhar
sobre a terra
que te cobriu

Álvaro Giesta -
Angola (Leste), 1971




In:  "TRIÂNGULO" - versos de guerra, amor e ódio. (a publicar)

Imagem: sapo.pt