MOTE:

"Eu sou uma autêntica bomba abandonada! Temo explodir a qualquer momento..."
- Frase de um ex-combatente, anónimo.

Amigos

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

MILONGA DO MORTO

Sonhei-o nesta casa
entre paredes e portas.
Deus aos homens permite
sonhar coisas que são certas.

Sonhei-o pelo mar dentro
numas ilhas glaciais.
Que nos digam o resto
a campa e os hospitais.

Uma dessas províncias
do interior foi sua terra.
(Não convém que se saiba
que morre gente na guerra.)

Tiraram-no do quartel
puseram-lhe nas mãos
as armas e mandaram-no
morrer com seus irmãos.

Agiu-se com a maior prudência,
falou-se de modo prolixo.
Entregaram-lhe ao mesmo tempo
o rifle e o crucifixo.

Ouviu inúteis arengas
de inúteis generais.
Viu o que nunca tinha visto,
o sangue nos areais.

Ouviu vivas e ouviu morras,
ouviu o clamor da gente.
E ele só queria saber
se era ou não valente.

Soube-o naquele momento
em que lhe entrava a ferida.
Disse Não tive medo
quando o deixou a vida.

A sua morte foi uma secreta
vitória. Não pasmem
que me dê inveja e pena
o destino daquele homem.

Jorge Luís Borges,
in: "Os conjurados"

Imagem: sapo.pt

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

ENCONTRO FORA DO TEMPO

in memoriam de José Carlos Godinho Ferreira de Almeida
Desces
da vida de além-morte
que me alumia.

Sereno vens
sereno e forte
servir de guia.

Apareces
da noite.
Marcas o norte
rasgas o dia.

Na amargura
da minha escura, crucial poesia
entreteces
com brandura e valentia
a ligadura de uma ferida
que sangra, tortura e arde -
e só não cura quem nesta vida
fugindo à lida se acovarde.

Cresces na funda raiz
de português meu irmão
filhos do mesmo país
nascidos do mesmo chão
floresces na cicatriz
e a abrir flores-de-liz
em chagas do coração
mátria, pátria, matriz
da universal condição.

(e aqui, por quanto fiz quanto não quis,
alheio à tua exemplar lição,
ó meu Irmão, ó minha Terra, ó meu País,
perdão milhões de vezes, perdão, perdão).

A sede que no barro se levanta
da fome que me afunda sob a lama
agora, mais que nunca, chora e canta
no rasto do teu vulto à voz que exclama:

Quando se vive e se morre
para cumprir o Dever
sem medo
e sem alarde -

para morrer não é cedo

para viver não é tarde.

Fernando Pinto Ribeiro (Guarda, 1928/Lisboa, 2009)
in: "O Cisne Submerso", Edium Editores, 2010


Imagem: sapo.pt

sábado, 1 de outubro de 2011

ODE À ESPERANÇA

 

do outro lado do esquecimento
há uma memória à espera de acordar
que o fogo a toque
o gume do sofrimento
a fragrância de um lírio
a evocação de um momento

do outro lado do esquecimento
há quem nos espera
na insónia do tempo
para acordar o sangue e o verbo

como se ao dar-se em sacrifício alguém soubesse
que o fim não é um caso encerrado
que a seguir ao fim há um depois

Joaquim Murale
in: retirado com a devida vénia do Jornal "Poetas & Trovadores",
de abril/junho de 2011, com alteração após chamada de atenção
do autor, ao qual da nossa parte pedimos desculpa.

Imagem: sapo.pt