MOTE:

"Eu sou uma autêntica bomba abandonada! Temo explodir a qualquer momento..."
- Frase de um ex-combatente, anónimo.

Amigos

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Texto de Fernando Peixoto, extraído do livro: "A Linguagem do Silêncio"

……….
O vestido rodado de Lígia começava a tornar-se insuportável: despi-lhe o vestido, único protetor
da sua nudez de castidade momentânea, e apertei-lhe com suavidade as nádegas quentes. Entretanto, as mãos de Lígia percorriam-me as curvas do ventre  e os eus dedos tateavam as curvaturas do meu sexo humedecido de suor e tensão. E ela, como estaria ela? Estaria o seu clitóris tão raivoso quanto a sua boca e as suas mãos? Apoiada uma das mãos sobre as nádegas de Lígia, mesmo junto ao desfiladeiro do ânus, dirigi a outra para a sua vagina. Friccionei-lhe o clitóris, introduzindo os dedos bem no interior da humidade viscosa da vagina em fogo, latejante.
Sacudido  por um profundo vómito, afastei-me rápido de Lígia e, ridículo, corri para o quarto-de-banho.

Não cheguei a acabar de beber a cerveja.
- Chega aqui, depressa.
- Estou a beber, pá. Tem calma. Ou é assim assunto tão urgente?
O cabo-enfermeiro, excitadíssimo de gozo, tirou-me a garrafa da mão e acrescentou:
- Ou vens já, ou perdes o melhor espetáculo da tua vida.
Intrigado, perguntei-lhe ainda:
- Mas o que é? Não me podes dizer?
Sem resposta, puxado por um braço, segui o cabo até ao barracão que o improviso e a imaginação transformaram em enfermaria do destacamento. À porta aglomeravam-se homens, mulheres e crianças: negros da povoação que vinham ao quartel para um tratamento ou uma injeção, para o diagnóstico erudito do cabo João, o doc de circunstância que fornecia penicilina em quantidades sempre insuficientes para as blenorragias coletivas. Alice, a negra dos olhos de amêndoa, lá estava também, com um pé embrulhado num pedaço de pano encharcado em sangue. «Foi um tijolo caiu no pé, fez frida nos dedo», disse-me ela quando os meus olhos de espanto e amizade se deslocaram para o fundo da sua perna linda, dum castanho ovomaltine.
Entrei seguido pelo cabo que, com o indicador sobre a boca, me solicitou um silêncio cúmplice. Depois abriu levemente a cortina e com um gesto convidou-me a espreitar.
Frente a nós, sobre a marquesa, estava estendida uma velha. Percebi-lhe uma certa irritação na forma exuberante como gesticulava acompanhando monossílabos mais ao menos grotescos, proferidos no dialeto kikongo que eu não entendia. De pernas esqueléticas, abertas esmesuradamente, os pés disformes e calosos, apertava nas mãos fechadas o pano que a envolvia, enquanto o alferes Simão, sem luvas, explorava os entrefolhos da vagina e contemplava, guloso, o sexo ancilosado da velha.
- Mas este gajo percebe alguma coisa disto?
- Nada – respondeu-me o cabo – O gajo é tarado, e como a velha se queixava da barriga, ele quis ver-lhe a cona. Disse que tratava dela num instante.
- E ela deixa?
Um misto de indignação e espanto percorria-me o cérebro. O que via era demasiado inverosímil e nojento para aceitar como real.
- Então, que queres? O gajo é alferes e a pretalhada julga que o gajo sabe de tudo. Deixa-se levar.
Senti-me tonto. Uma náusea enorme começou a revolver-me. As pernas tremeram-me e tive de encostar-me à parede do barraco. Nesse momento saía o alferes, feliz. O cabo João perguntou-lhe, matreiro:
- Foi a primeira vez, não foi, meu alferes?
Sorrindo e piscando o olho ao cabo, o alferes Simão procurou disfarçar enquanto se encaminhou apressado para a retrete:
- Não! Era o que faltava!
O cabo João apercebeu-se então da minha palidez estranha.
- O que tens, pá? Estás branco… e a suar!
Não respondi. Não conseguia responder. De um jato projetei pela boca a cerveja e a sande que ingerira momentos antes. Cambaleando, atravessei a parada em vómitos sucessivos perante o espanto dos negros que aguardavam a vez de serem atendidos.
Quando entrei na retrete, surpreendi o alferes Simão, de pé, encostado à parede de madeira, masturbando-se.

Eu sei, Lígia.
Não posso, não quero, não devo culpar-te.
É estranha esta forma sinuosa de percorrer os caminhos do nosso quotidiano. È insólito – no mínimo – este vai-vém de determinação e de fuga, esta viscosidade de aranha com que insuflamos as nossas relações. Mas a teia que erguemos – ambos – não chega para suster o declive dos desfiladeiros da angústia por onde nos vemos impelidos a passar.
Os gritos do desespero não sustem a nudez da minha náusea constante e crescente. Que não vem de ti, mas talvez do que representas, da memória coletiva que refletem os teus gestos, ou da passividade com que rodeias a maior parte das nossas horas comuns.
Logo hoje, que foste diferente, que pela primeira vez tentaste aproximar-te da preversão que conferiria ao teu rosto e aos teus gestos uma imagem nova e infinitamente mais atrativa, logo hoje que pensei colher em ti miríades de surpresas no gozo com que disfrutaria as linhas redondas do teu corpo, o passado avançou num galope irrefreável, enchendo de poeria e de esterco as veredas da minha memória adormecida.
Já não sei, Lígia, se preferes a mentira meticulosamente preparada. Se a verdade agreste e cortante das arestas álgidas da memória que me persegue.
Não entendeste. Não aceitaste. Chamaste-lhe invenção. «Inadmissível», para empregar o termo exato da tua imaginação irrefreável.
O teu ontem foi bem diferente e por mais estórias que te conte, mesmo que verídicas, acreditas mais na verosimilhança de Max du Veuzit. Freud foi um charlatão propagandista que pretendeu impingir a banha da psicanálise aos pascácios nascituros do século XX, e a guerra colonial um divertimento de velhos para estimular aventuras na juventude hippy dos anos sessenta, proporcionando aos futuros chefes-de-família estórias grotescas e sado-masoquistas.

………. Chegamos a casa juntos. Jantamos juntos. Vemos ambos televisão e continuamos a dormir na mesma cama. No entanto, mesmo à mesa, lado a lado, sentimos a presença incómoda do silêncio que se estatelou no nosso meio. A sua aragem fria arrepia-nos os braços e impede-nos de respirar, como se o espaço entre as nossa bocas estivesse carregado da sua presença. Também ele orienta os nossos olhos, para que as nossas retinas se não cruzem, e afasta os nossos joelhos quando, sentados lado a lado, estimulamos o monólogo do televisor.

Há dias, no Café, deixei cair distraidamente o pacote de açúcar, ainda fechado, dentro da chávena. Depois tentei pescá-lo com a colher, o que consegui à terceira tentativa. Angélica, ao meu lado, ria divertidíssima e eu acabei rindo com ela.
Vou fazer o mesmo. De propósito. Se te rires dou-te um beijo e rio-me também. Talvez desta forma possamos dar um pontapé no cu do silêncio.
Já o fiz. Não riste. Apenas um ligeiro olhar de soslaio e de novo o regresso da tua atenção para o vídeo colorido.
Ergui-me: o Silêncio dava as mãos à Indiferença e dançavam juntos os «Contos de Hoffman» de Offenbach.
Dirigi-me à sala-de-estar para escrever um pouco. Angélica passeava, descalça, sobre o quadriculado do papel.

Fernando Peixoto
in: Excerto do Capítulo 10 d’ “A Linguagem do Silêncio” -
- (Ciclo da Guerra Colonial – II), Porto, 1984
    

Sem comentários:

Enviar um comentário