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"Eu sou uma autêntica bomba abandonada! Temo explodir a qualquer momento..."
- Frase de um ex-combatente, anónimo.

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quinta-feira, 14 de abril de 2011

OS IDOS ANOS 60

em memória do meu irmão António (1952-1972)

Dizem que foi a década de todas
ou, enfim, das maiores
convulsões sociais e de costumes.

Cá no rectângulo pouco se notava
embora já houvesse televisão
e vanguardas literárias
e algumas mulheres tomassem já a pílula
e as primas mais velhas começassem 
a usar mini-saia.

Era uma época diferente:
ensinava-se ainda a respeitar
a autoridade dos mais velhos
e a venerar a antiga trilogia
em que já menos gente acreditava.
Nas escolas havia grandes mapas
de Angola, Moçambique e das restantes
províncias ultramarinas
para mostrar que Portugal media
bem mais do que a Europa.
Aprendíamos tudo: a ler, a fazer contas
e a decorar sem saber como
todas as dinastias e batalhas,
todos os rios com os seus afluentes
e todos os ramais de cada linha férrea.

Mais tarde, pouco a pouco, percebíamos
que o mundo era maior,
que era uma coisa estranha e fascinante
e em 68 ou 69
era através de ti que eu descobria
os Beatles e os Stones;
as canções do Bob Dylan protestando
contra a eterna guerra do Vietname;
as barricadas de Paris;
e dietlamida do ácido lisérgico
que alguns tomavam, como se o infinito
fosse apenas questão de bioquímica;
os livros e os discos proibidos
que toda a gente ouvia;
o retrato do Che, obrigatório,
que também tu quiseste pôr no quarto;
e as emissões de Argel em ondas curtas
que nas noites de férias escutávamos
com o prazer dos gestos clandestinos
p'la madrugada fora
no pátio dessa quinta onde não mais voltei.

Era depois da morte, meu irmão
- pobre revolucionário do Vavá,
adolescente em fuga até ao fim,
rebelde e todavia inofensivo
como outros james Deans da Avenida de Roma
com quem ias colar alguns cartazes
nas eleições de 69
irrompendo nas motos a alta velocidade
em busca de razões para salvar o mundo
ou nisso procurando simplesmente
alguma adrenalina.

era depois da morte, irmão mais velho,
anjo de puro fogo ou puro vento,
paradigma dos meus anos 60,
confiando talvez noutro futuro
que nunca conheceste e sempre me pareceu
um tanto folclórico, é verdade
- porque eu, que já não fui revolucionário,
me habituei depressa a contemplar
os logros dessa década afinal
com o seu quê de sinistro
embora hoje tenda a comover-me
com os mitos fundadores da tua juventude
graças ao teu sorriso
cuja luz nunca soube decifrar.

Passaram trinta anos, cresceu já
isso a que chamam outra geração:
este rectângulo é mais europeu, 
tornámo-nos um pouco mais parecidos
com o resto do planeta, mas não sei
que monstro devorou a nossa eternidade,
que sombra ocupa agora o teu lugar
neste mundo mudado, neste mudo
aceno do milénio quando volto
a essa década infantil
só para te perguntar trinta anos depois:
porque me abandonaste?

Fernando Pinto do Amaral,
In: "Poemas Escolhidos (1999-2007)"
Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2007 

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